2.6.01

Cidade de Vidro

Adaptações de romances para quadrinhos costumam não dar muito certo. Ou as coisas saem apressadas demais devido ao número de páginas inferior, ou as histórias se arrastam e se arrastam, na tentativa de não deixar nada do original de fora. Além disso, romances são bastante diferentes de hqs: eles permitem a exploração da vida interior dos personagens e aquilo que não pode ser visto. Coisa que não é fácil de fazer nos quadrinhos sem recorrer a quilos de texto.

É difícil, mas não chega a ser impossível. Um exemplo de adaptação que funciona (e muito bem!) é a que Dave Mazzucchelli faz da novela "Cidade de Vidro" (extraída do livro "Trilogia de Nova Iorque", do escritor e diretor de cinema Paul Auster).

Mazzucchelli é velho conhecido dos fãs de Frank Miller: foi ele que ilustrou "Demolidor - A Queda de Murdock" e "Batman - Ano Um". Depois disso ele largou os super-heróis para se dedicar a experimentos nas hqs alternativas. Em uma entrevista à revista americana Wizard, ele declarou que "Demolidor foi a conclusão de meus estudos universitários. Ano Um, minha pós-graduação. As coisas que fiz depois eram o porquê de eu estar estudando".

"Cidade de Vidro" é, na superfície, uma história de detetive: o escritor de histórias de detetive Daniel Quinn recebe um telefonema no meio da noite procurando por Paul Auster, pois apenas ele pode dar a proteção que a voz na ligação precisa. Sabe-se lá por que, Quinn acaba se interessando pelo caso e resolve se passar por Auster.

Enquanto a novela vale a pena pelas complexidades de Quinn e dos jogos de palavras, a adaptação vale pela maneira com que Mazzucchelli ilustra as grandes, às vezes enormes, exposições de Auster (o escritor de verdade, não o detetive ou o personagem no livro): as imagens vão acompanhando e expandindo, de maneira às vezes inusitadas, o sentido das palavras. Logo na abertura da história, enquanto o texto fala da vida de Quinn e da maneira com que sua identidade se mescla com suas caminhadas pelas ruas de Nova Iorque, as imagens vão fundindo ruas e traços sem formas, até se tornarem a digital de Quinn em uma janela que mostra a cidade.

Seqüências como essa ilustram o potencial dos quadrinhos quando os autores se lembram que as hqs não são só imagens ilustrando textos, mas uma forma de colocar as duas coisas a serviço do que nenhuma delas pode fazer sozinha.

Cidade de Vidro saiu aqui pela Via Lettera(RSF)